“Bipolares são mais inteligentes”. Essa afirmação, repetida com curiosidade ou admiração, circula em redes sociais, rodas de conversa e até mesmo em ambientes clínicos. Muitos a associam a figuras históricas criativas, como Vincent van Gogh ou Virginia Woolf, cuja genialidade parece ter caminhado lado a lado com o sofrimento psíquico.
Mas até que ponto essa ideia é verdadeira? Seria a inteligência uma consequência direta do transtorno bipolar? Ou estaríamos apenas romantizando uma condição que, na prática, exige enfrentamento constante, tratamento adequado e compreensão profunda?
Neste artigo, vamos explorar as raízes dessa crença, as evidências científicas disponíveis e, sobretudo, os riscos de transformar um transtorno mental sério em sinônimo de genialidade.
Ao fazer isso, não buscamos diminuir a potência criativa de quem convive com o transtorno, mas sim ampliar o olhar: inteligência, criatividade e sensibilidade podem, sim, coexistir com a bipolaridade, mas não devem ser vistas como definições universais.
O que está em jogo aqui é mais do que um elogio equivocado: é o direito de ser percebido para além de um rótulo, com toda a complexidade que a condição humana merece.
De onde vem essa ideia?
A associação entre bipolaridade e inteligência tem raízes culturais, históricas e até literárias. Desde a Antiguidade, a figura do gênio atormentado aparece com frequência.
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Pensadores como Aristóteles já sugeriam que a melancolia estaria ligada a talentos incomuns. Na modernidade, essa imagem se intensificou com relatos biográficos de artistas, escritores e cientistas que apresentavam oscilações emocionais intensas e, ao mesmo tempo, produziam obras grandiosas.
Casos como os de Ernest Hemingway, Sylvia Plath e Kurt Cobain alimentam a percepção popular de que o sofrimento psíquico, especialmente a bipolaridade, seria quase um combustível para a genialidade.
Além disso, há um fenômeno clínico real que reforça essa crença: durante episódios de hipomania (comuns no transtorno bipolar tipo 2), algumas pessoas relatam aumento na fluência verbal, ideias rápidas, energia elevada e até maior produtividade intelectual.
Esses períodos podem, de fato, coincidir com momentos de intensa criatividade. No entanto, o que é frequentemente esquecido é o custo psíquico que vem em seguida:
- O esgotamento;
- A confusão mental e;
- A instabilidade emocional.
A leitura popular enxerga o brilho, mas ignora as sombras que o acompanham. E é justamente aí que o mito se forma: ao supervalorizar momentos isolados, e descontextualizar o sofrimento real que permeia a experiência bipolar.
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O que dizem as pesquisas?
Embora a ideia de que pessoas com transtorno bipolar seriam mais inteligentes pareça popular, as evidências científicas sobre isso são bem mais nuançadas. Estudos mostram que não há diferença significativa entre o QI médio de pessoas com bipolaridade e o da população geral.
Ou seja, ter o transtorno não implica, por si só, em maior inteligência. O que se observa, com mais frequência, são flutuações no desempenho cognitivo ao longo dos episódios:
- Durante fases de hipomania, por exemplo, pode haver maior agilidade mental e criatividade verbal;
- Já na depressão ou mania grave, essas funções geralmente sofrem queda.
Em contrapartida, alguns estudos sugerem uma ligação entre bipolaridade e criatividade, especialmente nas artes e nas ciências. Isso não significa que o transtorno gere genialidade, mas que certas características associadas, como pensamento divergente, sensibilidade emocional e hiperconectividade de ideias, podem, em contextos específicos, favorecer a expressão criativa.
No entanto, é preciso cuidado: muitas dessas habilidades só se manifestam quando a pessoa está estável e em tratamento, e não durante crises. A glamorização do sofrimento como origem da inteligência pode ser não apenas imprecisa, mas também perigosa, promovendo uma imagem distorcida do que é, de fato, viver com bipolaridade.
Os riscos da romantização
Transformar o transtorno bipolar em sinônimo de inteligência ou genialidade parece uma forma positiva de olhar para a condição quase como um elogio disfarçado de empatia. No entanto, essa visão esconde armadilhas sérias.
Ao romantizar a bipolaridade como uma porta de entrada para o brilhantismo, corre-se o risco de:
- Invisibilizar o sofrimento real;
- As dificuldades do tratamento;
- Os impactos nas relações e na funcionalidade cotidiana.
Essa idealização alimenta um estigma diferente: o da obrigação de ser excepcional, como se a dor só tivesse valor se viesse acompanhada de uma obra-prima.
Além disso, essa narrativa afasta muitas pessoas do diagnóstico e do cuidado. Quem vive com bipolaridade e não se sente mais criativo, produtivo ou inteligente pode interpretar isso como fracasso pessoal.
Da mesma forma, familiares e amigos podem relativizar os sintomas, dizendo coisas como “mas você é tão inteligente, isso não pode ser doença“. Essa percepção distorcida também dificulta o acesso a direitos, laudos e compreensão social.
No fim, o que parece um elogio se revela um novo tipo de pressão silenciosa, idealizada e profundamente solitária.
Palavras finais
A pergunta “bipolares são inteligentes?” talvez diga mais sobre a nossa sociedade do que sobre o transtorno em si. Vivemos em uma cultura que valoriza a produtividade, a genialidade e o brilho individual e, por isso, muitas vezes tenta ressignificar o sofrimento psíquico como um dom, uma virtude oculta.
Mas, transtornos mentais não são talentos mal compreendidos. São vivências complexas, que envolvem dor, instabilidade, mas também potencial de transformação e resiliência. Quando há acolhimento, tratamento e dignidade.
Sim, pessoas com transtorno bipolar podem ser incrivelmente criativas, sensíveis, intelectualmente intensas. Mas isso não é uma regra, nem o define. A verdadeira revolução está em permitir que essas pessoas existam para além do mito: que possam ser brilhantes ou não, produtivas ou não, intensas ou tranquilas, e que isso não diminua seu valor.
Mais do que discutir se bipolares são mais inteligentes, talvez devêssemos nos perguntar: estamos dispostos a enxergar quem elas são, mesmo quando não nos impressionam?
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