O transtorno de ansiedade generalizada (TAG) é um dos mais prevalentes problemas de saúde mental no Brasil, afetando milhões de pessoas. Segundo a OMS, cerca de 19 milhões de brasileiros convivem com ansiedade e depressão.
O impacto emocional e social é elevado, especialmente após a pandemia, que acentuou o estigma e a demanda por cuidados psicológicos. Nesse contexto, ferramentas digitais e de inteligência artificial (IA) surgem como coadjuvantes promissores na psicoterapia, ampliando o acesso a intervenções e oferecendo suporte 24h.
Algumas perguntas guiam este artigo: como a IA pode complementar o tratamento da ansiedade? Quais são seus benefícios reais e riscos potenciais no ambiente terapêutico?
O avanço de plataformas digitais de saúde mental foi potencializado pela necessidade de atendimento remoto durante a COVID-19. Hoje há aplicativos e chatbots que simulam conversas psicoterapêuticas e programas de autorregulação emocional.
Embora essas ferramentas auxiliam no autoconhecimento e regulação do humor, elas não substituem a psicoterapia clínica tradicional.
O objetivo deste artigo é mapear as aplicações práticas da IA no tratamento do TAG no Brasil, discutindo ganhos (acesso, personalização, suporte contínuo), limitações técnicas e clínicas, e ponderações éticas (privacidade, responsabilidade e desigualdades no acesso). Ao final, exponho perspectivas futuras, sempre lembrando: a IA é uma aliada, não um “psicoterapeuta-robô” substituto.
Benefícios da IA no tratamento do TAG
A incorporação da IA na psicoterapia do TAG traz vantagens reconhecidas por especialistas. Entre elas:
Ampliação do acesso
Chatbots e apps permitem que pessoas em áreas remotas ou sem psicoterapeuta local busquem suporte. Como aponta Domiciano (USP-USP), durante a pandemia houve “ganhos claros” com a psicoterapia a distância, aumentando o acesso em lugares com rede restrita.
A telepsicoterapia é vista como um complemento necessário: “apesar das limitações, serve como primeiros socorros em momentos de ansiedade aguda“. Isso é crucial num país de dimensões continentais como o Brasil, onde o atendimento tradicional não alcança todos.
Personalização das intervenções
Algoritmos ajustam a psicoterapia ao perfil do usuário. O app Cíngulo, por exemplo, faz 36 perguntas iniciais para criar um programa exclusivo, “com sessões personalizadas” de acordo com as respostas do paciente.
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Plataformas baseadas em TCC aprendem com dados de uso e reforçam técnicas que funcionam melhor para cada indivíduo. Essa adaptabilidade potencializa o engajamento e a eficácia do tratamento.
Suporte contínuo
Diferente de sessões semanais, os sistemas de IA ficam disponíveis o tempo todo. Uma usuária minha relatou que se sente ansiosa no trabalho e: “usa o app para escrever o que está pensando e normalmente me sinto mais tranquila depois. O fato de usar como substituto para mídias sociais também faz com que minha ansiedade fique sob controle“.
Esse tipo de diário emocional digital, oferecido por apps como Wysa ou Youper, permite ao usuário registrar emoções e receber feedback imediato, funcionando como um canal de desabafo e autocontrole.
Prevenção e autorregulação
Além de tratar sintomas agudos, a IA incentiva hábitos saudáveis que previnem recaídas. O automonitoramento contínuo ajuda o paciente a identificar padrões e gatilhos emocionais.
Como destaca Peuker (Bee Touch), o “automonitoramento pode ajudar a pessoa a identificar algum problema ou padrão emocional que pode ser bem importante para evitar o adoecimento“. Em outras palavras, o uso proativo de apps auxilia na detecção precoce de surtos ansiosos e no aprendizado de técnicas de enfrentamento, agilizando a busca por ajuda profissional quando necessário.
Benefícios-chave da IA: amplia o alcance da terapia, personaliza o cuidado ao paciente, oferece apoio ininterrupto e potencialmente facilita a prevenção de crises. Em suma, as tecnologias digitais promovem empoderamento do usuário, dando-lhe ferramentas para gerenciar melhor a própria ansiedade no dia a dia.
Como resultado, pacientes têm mais opções de intervenção além do consultório clínico, o que reduz o tempo de espera por ajuda psicológica nos serviços públicos e privados.
IA e a psicodinâmica do TAG
A psicodinâmica do TAG envolve uma teia complexa de medos difusos, preocupações inconscientes e conflitos internos muitas vezes não verbalizados.
Enquanto a inteligência artificial na psicoterapia da ansiedade tem mostrado eficácia em lidar com sintomas cognitivos e comportamentais, sua atuação nos domínios profundos do psiquismo ainda é limitada.
A IA interpreta o que é dito, mas e o que é silenciado? A questão é crucial: pode uma IA lidar com afetos que sequer foram simbolizados pelo sujeito? Essa limitação impõe fronteiras importantes à proposta de automação da psicoterapia.
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A experiência clínica com pacientes com TAG mostra que, por trás da “preocupação excessiva”, há sentimentos como culpa, vergonha, medo da castração simbólica ou fantasias inconscientes ligadas à perda, abandono e impotência.
Esses conteúdos não são logicamente estruturados e nem sempre verbalizáveis, e exigem um processo contínuo de interpretação, escuta empática e elaboração. Ferramentas digitais, por mais sofisticadas que sejam, ainda não têm capacidade de reconhecer lapsos, deslocamentos, resistências e atuações transferenciais, elementos centrais da abordagem psicodinâmica.
Portanto, a IA oferece alívio superficial, mas dificilmente promove a integração simbólica de conflitos emocionais mais profundos.
Aspectos psicodinâmicos do TAG | Capacidade da IA lidar com eles |
---|---|
Conflitos inconscientes | Baixa: não acessa o inconsciente |
Resistência à mudança | Ignorada: IA reforça comportamentos previsíveis |
Transferência e contratransferência | Inexistente: não há vínculo real |
Registros simbólicos de trauma | Parcial: capta o relato, não a carga emocional implícita |
Repetição compulsiva | Parcial: identifica padrões, mas sem interpretá-los simbolicamente |
Ainda que modelos como GPT e sistemas baseados em linguagem avancem, a IA opera com base na probabilidade estatística de palavras e não em significados emocionais latentes.
Um paciente pode, por exemplo, relatar insônia e tensão muscular, e a IA recomendar mindfulness, o que é tecnicamente coerente. No entanto, pode haver luto não reconhecido, medo de dissolução do Eu ou regressão defensiva por trás dos sintomas, que passariam despercebidos sem a escuta clínica profunda.
Isso destaca um risco: o foco excessivo em soluções pragmáticas e rápidas pode reforçar mecanismos de defesa evitativos, mascarando o sofrimento real.
Essa constatação é ainda mais sensível quando pensamos em pacientes que usam a tecnologia como defesa em si. É comum observar, em casos de TAG com forte evitação emocional, o uso compulsivo de apps de bem-estar, trackers de humor e bots de conversa como formas modernas de racionalização, transformando a angústia em números, gráficos e notificações.
A IA, nesse caso, corre o risco de ser cooptada como defesa narcísica ou obsessiva, funcionando mais como barreira que como instrumento de cuidado. Isso convida o psicoterapeuta a não só avaliar o conteúdo das interações com IA, mas também o sentido subjetivo dado a ela.
Para lidar com essas sutilezas, o psicoterapeuta deve adotar uma postura reflexiva junto ao paciente, perguntando, por exemplo: “O que você sente ao usar o aplicativo quando está ansioso?“, ou ainda: “Como é confiar em uma máquina para lidar com seus sentimentos?“.
Essas perguntas abrem espaço para a metacognição emocional, um passo importante rumo à simbolização. Assim, a IA pode ser objeto de análise clínica, revelando defesas, angústias e modos de lidar com a ansiedade. Em vez de apenas “usar IA”, o paciente passa a refletir sobre como usa, por que usa e o que evita ao usar.
Portanto, se integrarmos tecnologia à psicoterapia psicodinâmica com cuidado, ela pode ser instrumento e espelho ao mesmo tempo. Um espelho que reflete os limites da racionalidade diante da angústia, mas também um instrumento que, com mediação humana, favorece a consciência de si.
Isso nos lembra que a IA não substitui o inconsciente, mas pode revelá-lo, se usada como parte da escuta clínica. A pergunta final fica como provocação: e se o uso da IA na ansiedade não for apenas funcional, mas também simbólico? O psicoterapeuta, como intérprete da subjetividade, é o elo que torna essa leitura possível.
Integrando IA e psicoterapia no tratamento do TAG
A integração da inteligência artificial na psicoterapia da ansiedade não precisa, e nem deve, seguir uma lógica de substituição. Cada vez mais, clínicas e consultórios precisam adotar modelos híbridos de cuidado, nos quais ferramentas de IA complementam o trabalho do psicoterapeuta.
Esses modelos potencializam o tratamento ao oferecer:
- Suporte entre sessões;
- Registro contínuo do humor;
- Prática autoguiada de técnicas cognitivas e;
- Monitoramento de gatilhos.
Em vez de excluir o terapeuta humano, a IA fortalece o vínculo psicoterapêutico, ao fornecer dados e insights úteis para o processo clínico.
No caso do TAG, cujos sintomas são difusos e persistentes, a continuidade entre sessões é crucial. Muitos pacientes relatam que o simples ato de “falar com alguém” todos os dias alivia o excesso de preocupação.
Porém, o psicoterapeuta não pode estar presente 24 horas por dia. Nesse ponto, apps com IA oferecem suporte emocional básico e ferramentas de enfrentamento cognitivo-comportamental para uso diário.
Elemento | Presencial | IA |
---|---|---|
Entrevista clínica | Exploração de narrativas e vínculos | Pré-triagem automatizada (formulários) |
Registro de humor | Diário em papel ou verbal | Entrada diária com gráficos e notificações |
Prática de técnicas | Role-playing, reestruturação cognitiva | Exercícios de TCC guiados por app |
Feedback do paciente | Conversa direta e subjetiva | Autoavaliação com IA e relatórios estruturados |
Além disso, a IA pode fornecer dados objetivos e longitudinalmente organizados, algo difícil de capturar apenas na memória das sessões.
Um exemplo prático: um paciente ansioso utiliza um app para registrar crises ao longo da semana. Ao revisar o gráfico gerado, percebe-se que a maioria dos episódios ocorrem nas manhãs de segunda-feira, algo que não havia sido verbalizado em sessão.
Essa descoberta permitirá trabalhar associações inconscientes com o início da semana, abordando questões de perfeccionismo e exigência no trabalho. A IA, portanto, atua como um espelho complementar que revela padrões invisíveis à consciência imediata.
Para que esses modelos híbridos funcionem de maneira ética e eficaz, alguns cuidados são essenciais. Listei abaixo boas práticas que sigo com meus pacientes:
- Indicar apps com base científica e leitura prévia das políticas de dados;
- Integrar o uso da IA às metas clínicas não como entretenimento, mas como ferramenta psicoterapêutica;
- Reservar espaço em sessão para discutir o conteúdo trazido pelo app, validando emoções e reformulando crenças;
- Orientar limites de uso, evitando que o paciente substitua o psicoterapeuta por algoritmos em situações complexas;
- Solicitar relatórios regulares ou prints de telas para análise conjunta.
Por fim, é importante reconhecer que o sucesso desses modelos híbridos depende de adesão ativa e supervisão profissional contínua. A IA não interpreta subjetividades profundas nem toma decisões clínicas.
Contudo, quando usada estrategicamente, permite ganhos notáveis na gestão do TAG
- Melhora da autoeficácia do paciente;
- Redução da dependência do psicoterapeuta e;
- Maior consciência dos gatilhos.
A chave está em construir um ecossistema psicoterapêutico inteligente, onde humano e máquina atuam como aliados no cuidado da saúde mental. Afinal, como gosto de lembrar aos meus pacientes: “a tecnologia pode ser o mapa, mas o trajeto quem trilha é você“.
Palavras finais
A inteligência artificial tem se mostrado uma aliada promissora no enfrentamento da ansiedade generalizada. Com aplicativos e chatbots de IA, muitos brasileiros estão conseguindo autogerir parte de seu tratamento, especialmente em momentos de crise ou em locais sem especialistas.
Essas ferramentas ampliam o acesso (permitindo cuidado remoto e 24/7), personalizam intervenções (adaptando exercícios ao perfil de cada usuário) e oferecem apoio contínuo (autodiagnóstico leve, técnicas respiratórias, gravação de humor).
Além disso, dados nacionais recentes confirmam a urgência desse apoio: o Brasil é líder mundial em prevalência de ansiedade, e houve crescimento exponencial das consultas virtuais em psicologia. Em termos práticos, isso significa que a IA pode mitigar o colapso do sistema tradicional de saúde mental, servindo como ponte para milhares de pacientes que, de outra forma, não encontrariam atendimento.
Referências
- FREIRE, T. Usar ChatGPT para fazer terapia oferece riscos e preocupa especialistas. CNN Brasil, 18 maio 2025.
- ROCHA, L. Mais de 26% dos brasileiros têm diagnóstico de ansiedade, diz estudo. CNN Brasil, 29 jun. 2023.
- PINSKY, I. Inteligência artificial na psicoterapia: e se funcionar melhor que gente? Veja, 22 abr. 2025.
- SOUZA, I. M. de; MACHADO-DE-SOUSA, J. P. Brazil: world leader in anxiety and depression rates. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 39, n. 4, p. 384, 2017.
- MEDICINA S/A. A cada 25 atendimentos, um é para tratar transtornos mentais. São Paulo: Medicina S/A, 27 jan. 2023.
- NA PRÁTICA. IA e saúde mental: aplicativos que ajudam a gerenciar o estresse e a ansiedade. Na Prática, 2023.
- SERENA APP. Sua terapeuta IA no WhatsApp. Disponível em: https://www.serenaapp.com/
- SINTELLY – CBT Therapy Chatbot. Google Play Store.
- YONESHIGUE, B. Conversa com robô: aplicativos para saúde mental com inteligência artificial crescem, mas não são consenso. O Globo, Rio de Janeiro, 8 jan. 2023.
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