Imagine a situação: uma pessoa sente-se emocionalmente abalada e busca um atestado psicológico, também chamado de atestado de saúde mental, atestado emocional, atestado clínico do psicólogo ou atestado de condição psicológica.
Ela acredita ter direito a esse documento para apresentar no trabalho ou na escola. Mas será que o psicólogo pode simplesmente emitir o atestado sob demanda? E em que casos esse profissional pode (ou deve) recusar fornecer tal documento?
Neste artigo, vou esclarecer essas dúvidas com base na legislação brasileira e na ética profissional em Psicologia, de forma acessível e responsável. Meu objetivo é proteger tanto o paciente quanto a prática profissional, explicando os direitos e limites relacionados aos atestados psicológicos para pacientes, familiares e empregadores.
O atestado psicológico é um direito ou uma concessão?
Muitas pessoas confundem o direito à saúde e ao cuidado com um suposto “direito automático” a receber um atestado psicológico sempre que desejarem. Afinal, o atestado é um direito?
Em termos gerais, sim, quando realmente há uma condição de saúde que o justifique, todo paciente tem direito a receber um documento que comprove sua condição e necessidade de cuidados.
Esse direito está alinhado ao princípio de acesso à saúde e ao bem-estar: ninguém deve ser forçado a trabalhar ou estudar enquanto sofre de um problema psicológico sério que exija pausa para tratamento.
No entanto, o atestado psicológico não é uma mera declaração concedida automaticamente, e sim um documento que depende de critérios técnicos e clínicos. Em outras palavras, não basta solicitar: é preciso que haja fundamento profissional para sua emissão.
O psicólogo precisa avaliar responsavelmente o paciente para determinar se realmente há necessidade de afastamento ou de comprovação de uma condição mental. Isso torna o atestado mais uma concessão baseada em avaliação do que um direito incondicional.
Ou seja, o paciente tem direito de receber um atestado se sua saúde mental o exigir, mas não tem direito de obtê-lo sem motivo comprovado.
Para entendermos melhor, considere a diferença entre dois documentos: declaração de comparecimento e atestado psicológico.
Leia também:
- Uma declaração de comparecimento é apenas um comprovante de que a pessoa esteve em atendimento (por exemplo, “Fulano compareceu à sessão com o psicólogo no dia X às Y horas”);
- O atestado psicológico vai além: ele atesta uma condição de saúde mental ou situação psicológica que justifica uma medida, como afastar-se de atividades. Por isso mesmo, o atestado requer avaliação mais aprofundada.
Um empregador pode recusar uma simples declaração de comparecimento (alegando que o funcionário poderia ter ido ao psicólogo fora do horário de expediente), mas um atestado psicológico carrega um peso técnico maior. Portanto, pode-se dizer que o atestado psicológico é um direito condicionado:
O paciente tem direito a cuidados e à documentação adequada de sua saúde mental, mas a emissão do atestado é uma decisão técnica do psicólogo.
Situações em que o psicólogo pode (ou deve) recusar
Agora, vamos aos casos práticos: em quais situações concretas um psicólogo pode, ou até deve, dizer “não” a um pedido de atestado? Longe de ser uma negativa arbitrária, a recusa normalmente visa proteger o paciente, a verdade dos fatos e a própria responsabilidade profissional. Aqui estão algumas situações comuns:
Quando não há diagnóstico ou condição justificada
Se o paciente não apresenta um quadro clínico relevante, não há como o psicólogo afirmar, em um documento oficial, que aquela pessoa deve ser afastada por motivo de saúde mental.
Por exemplo: alguém sem sintomas significativos pede um atestado só porque está levemente estressado com o trabalho. O psicólogo, ao avaliar, percebe que não há indicativo de transtorno mental ou crise aguda, mas apenas um cansaço passageiro.
Nessa situação, emitir um atestado seria falsificar a realidade, e o psicólogo deve recusar.
Ele pode, em vez disso, orientar o paciente em estratégias de enfrentamento do estresse ou recomendar outras medidas, mas não pode criar um documento oficial alegando doença inexistente.
A ética profissional ampara essa recusa: é vedado fazer declarações falsas ou sem fundamento. Emitir atestado sem real necessidade configura má-fé e traz consequências ao paciente (ex.: se descobrir que o afastamento não tinha motivo, o paciente poderia perder emprego por falta injustificada).
Quando o paciente busca o atestado por motivos alheios à saúde
Infelizmente, há casos em que a pessoa quer o documento “só para apresentar e faltar sem descontar o dia”, sem estar doente de verdade.
Isso ocorre com estudantes (querendo faltar prova) ou trabalhadores (querendo emendar feriado, por exemplo). Nesses casos, o psicólogo tem não só o direito, mas o dever de recusar.
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Aqui, fornecer o atestado seria conivência com um ato antiético.
Embora dizer “não” desaponte a pessoa, faz parte da responsabilidade do psicólogo zelar pela honestidade.
Outro exemplo: Marcelo procura um psicólogo apenas para conseguir um atestado de uma semana, alegando um problema que ele mesmo admite ser fingido. O psicólogo explica que não pode fornecer o documento, pois atestado não é ferramenta para burlar compromissos, e sim um recurso de saúde. Marcelo sai contrariado, mas essa negativa protege tanto a ética quanto evita que Marcelo cometa fraude.
Quando ainda não há avaliação suficiente
Às vezes, já na primeira sessão o paciente solicita um atestado. O psicólogo pode recusar naquele momento inicial, não por negar-se a ajudar, mas porque ainda não tem elementos para embasar o documento.
Em um primeiro contato, o profissional mal começou a conhecer a história do paciente. Se o paciente diz: “Acabei de chegar, mas preciso de um atestado de que estou incapacitado para trabalhar por 10 dias“, o psicólogo eticamente deve explicar que precisa avaliá-lo melhor antes.
O atestado psicológico resulta de avaliação; ele deve conter apenas fatos constatados e respaldados em registros.
Porém, recusar de imediato não significa negar definitivamente, mas que é preciso mais tempo (veremos adiante a diferença entre recusa e postergação). Aqui o psicólogo age com cautela para não emitir um documento precipitado.
Ele pode, por exemplo, agendar sessões mais próximas ou solicitar algum exame psicológico antes de decidir sobre o atestado. Essa conduta protege o paciente também: imagine se, sem avaliação, dá-se um atestado e depois descobre-se que não era necessário.
Quando o tipo de atestado pedido não é de competência do psicólogo
Existem situações em que o paciente ou terceiros solicitam ao psicólogo um documento que foge ao escopo da Psicologia.
Por exemplo: um empregador pede para o psicólogo da empresa emitir um atestado de saúde ocupacional completo (que geralmente é feito por médico do trabalho) ou um familiar quer que o psicólogo dê um atestado de deficiência mental para fins de benefício previdenciário (função que exige avaliação médica e multiprofissional).
Nesses casos, o psicólogo deve recusar, caso contrário estaria invadindo área de outro profissional se o fizesse.
O que o psicólogo deve fazer é emitir, quando cabível, documentos dentro do seu alcance, como um relatório psicológico para auxiliar no laudo médico, ou um parecer para contribuir com informação psicológica, mas não um atestado médico.
A Resolução CFP 06/2019 é clara ao dizer que o psicólogo deve atuar nos limites de sua competência. Então, se for cobrado dele um atestado sobre algo que não pode comprovar (por exemplo, uma doença física, um exame de sangue, um CID que só médico pode usar etc.), ele tem respaldo ético e legal para negar.
Quando há conflito de interesses ou pressão antiética
Imagine um cenário onde o superior hierárquico pressiona o psicólogo (seja da empresa ou psicoterapeuta do paciente) a emitir um documento liberando ou afastando alguém por razões não-técnicas. Ou o paciente tenta coagir o psicólogo (“se você não me der o atestado, nunca mais volto e falarei mal do seu trabalho“).
Nesses contextos de coação, pressão indevida ou conflito, o psicólogo pode e deve recusar atender à demanda.
O Código de Ética prevê que, havendo incompatibilidade com os princípios do exercício profissional, o psicólogo deve recusar-se a prestar serviços. Ceder a pressões que firam a ética (como atestar algo só para agradar alguém ou evitar um conflito) não é correto.
Mesmo que a recusa gere um desgaste momentâneo, é preferível a comprometer a integridade profissional. O psicólogo deve explicar de forma didática os motivos da negativa, e inclusive apontar caminhos alternativos (por exemplo: “Não posso declarar isso em um atestado, mas podemos encaminhar você para um psiquiatra avaliar tal condição específica” ou “posso fazer um relatório sobre o que observei, mas não nos termos que você pede, pois não seria verdadeiro“).
Quando o atestado causará mais mal do que bem ao paciente
Em geral, se o paciente precisa, o atestado faz bem (permite descanso, tratamento, adaptação). Porém, imaginem um paciente com ideação suicida pedindo um atestado para se afastar totalmente das atividades e ficar sozinho em casa.
Talvez, neste caso, o psicólogo avalie que um afastamento sem acompanhamento intensivo agrave o quadro (isolamento pode piorar a depressão). O psicólogo deve então recusar simplesmente dar um papel e “liberar” o paciente, optando por outra conduta, como encaminhar para internação ou um tratamento mais intensivo. Não é bem uma recusa de atestado por capricho, mas sim uma escolha de outra intervenção mais adequada.
Outro exemplo: um paciente com transtorno de ansiedade quer um atestado para evitar apresentar um trabalho da faculdade. Se o psicólogo julgar que enfrentar a situação com apoio psicoterapêutico seria melhor para o crescimento do paciente do que evitar a situação, ele deve não dar o atestado e trabalhar a ansiedade de outra forma.
Aqui entra o princípio da beneficência e não maleficência: fazer o bem sem causar danos.
A decisão deve sempre considerar o que é melhor para o paciente em longo prazo, mesmo que a vontade imediata dele seja outra.
Resumindo: o psicólogo recusa emitir o atestado quando emití-lo seria antiético, ilegal, incompetência ou prejudicial. É importante salientar que a recusa deve ser comunicada de forma clara e empática.
O profissional explicará as razões ao paciente, mostrando que não se trata de falta de vontade de ajudar, mas sim de seguir a ética e a lei para o bem de todos. Muitas vezes, o psicólogo oferece soluções alternativas.
O essencial é nunca emitir um atestado “para quebrar galho”, pois isso desvaloriza o documento e fere a confiança na profissão.
A diferença entre recusar e postergar a emissão
É importante diferenciar recusa definitiva de adiamento (postergar) na emissão do atestado. Muitas vezes, o psicólogo não diz exatamente “não vou dar o atestado“, mas sim “ainda não posso dar o atestado agora“. Essa distinção faz toda a diferença e costuma ser guiada pela necessidade de avaliação contínua.
- Recusar implica que o profissional avaliou a situação e concluiu que não é apropriado emitir o documento, ponto final (ao menos enquanto o contexto não mudar);
- Postergar significa que o profissional reconhece que pode haver necessidade do atestado, mas não dispõe naquele momento de informação suficiente ou condições para emiti-lo de forma responsável, optando por esperar mais um pouco.
Legalmente e eticamente, postergar não fere nenhum princípio, desde que o psicólogo esteja acompanhando de perto e pronto para agir quando necessário. O que não pode é enrolar indefinidamente se a pessoa realmente precisar.
A diferença sutil é que, na recusa, o psicólogo já identificou que não vai haver necessidade ou possibilidade do atestado naquele contexto (por exemplo, era um pedido indevido, ou algo que nunca caberá a ele). Na postergação, ele sinaliza: “vamos observar mais um pouco“.
Muitas vezes, os próprios pacientes entendem e até concordam com esse processo quando é bem explicado. O psicólogo pode dizer algo como: “Quero ter certeza de que te dar um atestado vai realmente te ajudar e é necessário. Vamos nos ver mais uma vez esta semana e, se eu perceber que você realmente não tem condição de voltar ao trabalho tão já, eu emito o atestado, tudo bem?“.
Essa comunicação clara alivia a ansiedade do paciente (que vê uma luz no fim do túnel caso piore) e mantém a seriedade do procedimento.
Em suma, postergar a emissão é uma alternativa ética válida quando o psicólogo julga que ainda precisa de informações ou tempo para uma decisão adequada. Não se trata de negar ajuda, mas de garantir que, quando dada, a ajuda (no caso, o atestado) seja fundamentada e eficaz.
Palavras finais
Concluindo, a possibilidade de um psicólogo recusar emitir um atestado psicológico não deve ser vista como uma atitude “negativa” ou falta de cuidado, mas como um ato de responsabilidade profissional e ética. Ele tem o compromisso tanto com o bem-estar do paciente quanto com a verdade e a justiça de suas ações.
Quando recusa ou adia um atestado, ele o faz para proteger o paciente de consequências indesejadas (como dependência desnecessária de afastamentos, problemas legais no trabalho ou rótulos indevidos) e para preservar a credibilidade da profissão (afinal, atestados só têm valor se são confiáveis).
Lembre-se de que o atestado psicológico é um documento sério, que “certifica, com fundamento no diagnóstico psicológico, uma determinada situação, estado ou funcionamento psicológico”. Espera-se, portanto, que seja usado nos momentos certos.
Ao mesmo tempo, se o paciente realmente precisa, o psicólogo não irá se omitir. Pelo contrário, faz parte do seu dever assegurar que o paciente tenha o amparo necessário, inclusive documental.
Para pacientes e familiares, a lição é: confie no discernimento do profissional. Exponha suas dificuldades sinceramente; se você acredita que precisa de um afastamento, diga o porquê. O psicólogo vai avaliar com seriedade.
Se ele disser que não é o caso de atestado agora, procure entender os motivos e os próximos passos sugeridos. Pode ser que outro tipo de ajuda seja mais eficaz naquele instante.
Para empregadores, a orientação é: leve em consideração o atestado psicológico quando apresentado. Ainda que a lei não o equipare ao atestado médico em termos de obrigatoriedade, ele é um indicativo de que aquele colaborador está enfrentando um desafio de saúde mental real, avaliado por um profissional qualificado.
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